Anatomia do conto
terça-feira, 10 de setembro de 2024
quarta-feira, 6 de março de 2024
O movimento anti-intelectual é só mais uma vertente da anti-ciência, terraplanismo e antivax. Pessoas extremamente ignorantes impondo seu achismo sem ter qualquer formação para fazer uma crítica/análise para além de um gosto formado por filmes como "A barraca do beijo". Uma preguiça de ler e de refletir. Também um moralismo rasteiro e burro sobre o ficcional (que absurdo, um cérebro de um bebê implantado numa adulta! Que horror: pedofilia!). Mesmo nível de gente que queima livros e se choca com Chapeuzinho Vermelho devorada pelo Lobo e resgatada intacta pelo lenhador. Nenhuma imaginação, leitura simbólica da arte. Gente que critica autores que nunca leu. O infantil: não li/vi e não gostei. A ignorância orgulhosa de si e ofendida com quem estudou, se formou, conhece em profundidade algo. "Pseudo-intelectual" usado como ofensa. Gente ressentida por que obtusa, devido a uma incapacidade de "ler" o mundo (que é complexo, cheio de nuances), pois lhe falta base, repertório, capacidade intelectual e cognitiva. Vocabulário pobre que reflete a limitação pessoal, baixa leitura, a preguiça de se instruir. A incapacidade de ler textos longos (textões, já que não apreendem o conjunto, se perdem no raciocínio). Uma geração de resumos de Powerpoint e velocidade 2x, que nivela tudo pela visão rasa e simplória que tem da Arte e do mundo. Tudo se resume a entretenimento (não se deve pensar, só sentir, se emocionar!!), pois pensar/compreender é "chato", coisa de "quem se acha", é "arrogante". Na verdade, para eles é doloroso saber-se ignorante, incapaz de sair da superfície. Confundem opinião pessoal sem fundamento com "verdade", cada qual tem a sua. Negam "fatos" e preferem "versões". Por isso o rancor com que atacam filmes que fogem à fórmula que foram domesticados a compreender. Rejeitam filmes antigos, em outras linguas, países, duração, ritmo, odeiam visões de mundo divergentes. Muito adestrados em tabus morais, religiosos, ideológicos. Já não pensam como indivíduos, mas como tropa/manada/fanfics, se expressam por clichês, memes, um infinito recorta e cola de opiniões de empréstimo ou tiradas do achismo. Por isso a resposta são sempre xingamentos, ironia e comentários vulgares. Cinéfilos num grupo de filmes que negam pensar e discutir aquilo que faz um filme ser mais que uma distração. Um Grupo de Cinéfilos invadida por gente que não quer saber nada de Cinema.
"À mente apavora o que ainda não é mesmo velho."(C.V.)
quarta-feira, 8 de dezembro de 2021
sexta-feira, 30 de agosto de 2019
Contos da Meia-Noite, da TV Cultura
Produção da Cultura adapta textos de escritores brasileiros em monólogos com atores como Marília Pêra e Beth Goulart
"Contos" injeta literatura na televisão
BRUNO YUTAKA SAITO
DA REDAÇÃO
O cenário é opressor. Sob o fundo negro, envolta por projeções de vídeos, Adriana (Maria Luisa Mendonça) vocifera contra a mãe (também interpretada pela atriz), presa a uma cadeira de rodas. Valores familiares são desafiados, rancores, expostos.
Em cena, ela se contorce e esbugalha os olhos. O contorcionismo não é num palco de teatro, o que causa um estranhamento ainda maior. Transformado em um monólogo, "A Medalha", de Lygia Fagundes Telles, desafia os limites impostos pela televisão, na série "Contos da Meia-Noite", projeto da TV Cultura em parceria com a Imprensa Oficial do Estado de SP.
Dirigida pelo videoartista Eder Santos, a série, que estréia amanhã, trará cem contos de alguns dos maiores autores brasileiros, de Machado de Assis a Clarice Lispector, interpretados na forma de monólogos por atores como Marília Pêra, Beth Goulart, Antonio Abujamra, Giulia Gam e Matheus Nachtergaele.
Mudança de ritmo
"Contos" causa estranhamento em um primeiro momento, para quem está acostumado aos padrões de rapidez videoclípica que ditam o ritmo da TV. Com episódios de dez minutos de duração, a série requer do telespectador atenção ao texto e às nuances corporais dos atores. Trata-se da conhecida performance teatral aplicada ao vídeo. "A série tem coisas pesadas, e esse é o desafio. Queria levar poesia à TV", diz Santos.
Em "Uma Vela para Dario", de Dalton Trevisan, por exemplo, o ator e diretor Antonio Abujamra injeta ainda mais tensão ao texto do escritor curitibano. Sob sua fala, é contada a história de Dario, sujeito que passa mal e morre na rua, sob os olhares nada solidários dos transeuntes.
Sob Abujamra, que fica entre três telas, são projetadas imagens de pessoas em trânsito, captadas pela equipe de Santos. "As vantagens da TV é que podemos experimentar um outro tipo de visão. Há a textura do tecido sobre as telas, o foco, a luz, as sombras etc."
Santos acredita que a linguagem densa desses primeiros episódios -já foram gravados 70- não vai afugentar o público. "Os telespectadores vêem de tudo na TV, há espaço para todos", diz.
"Temos uma cultura contaminada pela linguagem rápida da TV. Quando alguém fala de um filme no cinema, por exemplo, as pessoas elogiam os efeitos especiais, a velocidade, e não a história em si. Falta poesia e ritmo."
Ele conta que "Contos" é gravado em duas etapas. Na primeira, os atores usam o teleprompter (monitor de vídeo com os textos), e lêem os contos na íntegra. "Na segunda, os atores soltam suas loucuras. O Abujamra, como tem experiência de diretor, já edita na hora seus textos, além de ter aquela aura maldita. Maria Luisa deu "olé" na gente, com sua loucura na interpretação."
A identificação com a atriz rendeu uma parceria. O diretor conta que fará junto com Mendonça o curta-metragem "Delicadeza do Amor", sobre "a visão do amor na voz de uma mulher". Já Beth Goulart, que faz "Duelo de Farrapos", de Simões Lopes Neto, propôs a Santos levar o projeto ao teatro.
CONTOS DA MEIA-NOITE. Quando: de seg. a sex., à 0h, na TV Cultura. Nesta semana serão exibidos "Um Apólogo", de Machado de Assis, com Marília Pêra (amanhã); "ZAP", de Moacyr Scliar, com Antonio Abujamra (ter.); "De Cima para Baixo", de Artur Azevedo, com Matheus Nachtergaele (qua.); "A Medalha", de Lygia Fagundes Telles, com Maria Luisa Mendonça (qui.); e "Duelo de Farrapos", de Simões Lopes Neto, com Beth Goulart.
terça-feira, 27 de agosto de 2019
HUMANIDADES, de Renato Janine Ribeiro
Leia abaixo a "Apresentação do organizador" do livro "Humanidades: um Novo Curso da USP", em que Renato Janine Ribeiro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP justifica o projeto do curso de humanidades.
Divulgação
Apresentação do organizador
Renato Janine Ribeiro1
Sempre experimental
Por que propor à Universidade um curso que tem em seu título a palavra experimental? Normalmente se entende que a experiência é uma fase, uma preparação, algo, portanto, de ordem temporária — e que, passados os testes, se chegará a um formato definitivo, adulto, maduro das coisas. Mas no curso que agora se propõe, a idéia é que ele nunca deixe de ser experimental.
Há dois sentidos da palavra experiência; talvez a língua portuguesa seja a que melhor evidencia ambos. É mais freqüente, na academia, pensar a experiência como o momento empírico da descoberta científica, como o conjunto de procedimentos que afere uma hipótese. Depois de Popper, é difícil imaginar que as experiências provem algo; tudo, na ciência, está em sursis: as próprias leis científicas só vigem enquanto não forem refutadas (e Popper deixou claro que só é científico aquilo que enuncia as condições precisas em que possa ser refutado). Nesse sentido, experimental tem um quê de provisório, de submetido a testes, de algo que não atingiu — mas continua tendo por meta — seu formato canônico.
Conhecemos, contudo, outro sentido da mesma palavra, intenso na filosofia desde Edmund Husserl, porém mais corrente na vida cotidiana: o de algo que se experimenta, o de vivência. Experimentar algo diz respeito então a uma relação quase sensorial, que passa pelos cinco sentidos — goûter, éprouver, dir-se-ia em francês2. Pois bem, nosso projeto é experimental mais neste sentido do que no primeiro. Queremos propor algo pouco usual, raro na administração pública e na universidade: um curso que seja experimental por constituir um caldo de cultura para, justamente, a cultura. Um curso no qual o acesso ao conhecimento será experimentado. E por isso, o novo curso jamais deverá deixar de constituir uma experiência.
Esta, a primeira tese que aparece implicada no curso de Humanidades: o mundo está em intensa mudança e é preciso abrir mais espaços de experimentação (aqui, também no primeiro sentido, de testar caminhos novos). Um modelo único de universidade, ou mesmo qualquer modelo de universidade, dificilmente dará conta deste nosso período em que se romperam os referentes — o que gera duas conseqüências: primeira, uma intensa angústia ante o desenraizamento em que nos vemos lançados; segunda, uma enorme liberdade de invenção para rumos ou idéias que podem até prescindir do pedigree conceitual que tantas vezes se exigiu, quando se queria — ou ainda se quer — legitimar uma proposta nova enraizando-a no velho, no tradicional, no já aceito. É como se toda a velha questão da legitimidade recuasse3 em favor de uma nova exigência, a da invenção, a da inovação.
Ainda governa nosso horizonte um paradigma universitário — que também foi um entre vários, mas se mostrou bastante forte no nível da graduação — que posso resumir assim. Para uma profissão já existente, ou que se deseja criar, concebe-se uma graduação, que vai conferir o título que autorize exercê-la. (Daí que parte significativa do esforço docente e discente consista em promover ou assegurar a regulamentação legal do exercício da respectiva profissão, o que requer bastante empenho junto ao Ministério do Trabalho e ao Congresso). Para esse curso de graduação, haverá um departamento e provavelmente um programa de pós-graduação. Assim, acabamos tendo uma seqüência densamente articulada, que une o doutorado, o mestrado, a estrutura departamental e o curso de graduação — tudo isso porque existe uma profissão. A pergunta, hoje, é se realmente é necessária uma articulação assim densa — se não podemos emancipar partes desse todo, a fim de dar-lhes maior liberdade tanto de pesquisa quanto de formação.
Não clonar o mercado
Mais que isso — já se pensou que um curso seria tanto mais moderno quanto mais ouvisse o mercado de trabalho. Daí que, em alguns cursos, se simulasse a atmosfera da empresa na qual os alunos iriam trabalhar, uma vez formados. Mas há um enorme equívoco por trás disso. A começar pelo fato de que as empresas se estão modificando com razoável agilidade, de modo que dificilmente o que hoje se aprende na universidade valerá — ainda — daqui há alguns anos. A universidade, por isso mesmo, não deve clonar ou replicar o que outro ambiente produzirá melhor. Um dos sinais auspiciosos de nossos tempos é que algumas, pelo menos, dentre as empresas percebem que podem e devem investir na formação, inclusive educacional, de seus empregados — e de qualquer forma, serão elas que os treinarão para as rotinas de trabalho.
Um exemplo, imaginário: suponhamos que uma universidade, entendendo que seu curso de jornalismo deva preparar para o mercado, resolva treinar seus estudantes para as diversas editorias de um jornal, e mais que isso, para redigir artigos nos estilos de dois grandes jornais diários nacionais e de uma ou duas revistas semanais. Se ela fizer isso com o intuito de formar seus alunos para o mercado, estará perdendo o tempo de todos. Porque é provável que a maior parte desse conhecimento nunca seja aproveitada: só uma minoria deles irá trabalhar num dos jornais ou revistas estudados; e os que forem para um desses órgãos poderão, graças ao que se chama de disciplina do mercado, rapidamente aprender a escrever da maneira desejada.
Mas pode ser que a universidade simule o ambiente de trabalho com um espírito antropológico — o de mostrar, como num psicodrama, quais as significações, quais os jogos de poder, quais os valores com que seus alunos se irão defrontar. Neste caso, ótimo! Eles aprenderão com uma ciência de ponta de nosso tempo, a antropologia, a relativizar situações que aparecem como determinantes e dominantes. Perceberão que o mercado de trabalho, por sinal extremamente diversificado, não é um absoluto ao qual devam curvar-se, mas um espaço de conflito e de disputa, dentro do qual é possível — e desejável — viabilizar projetos diferenciados.
Clonar o mercado, dizia, é inútil. Tentando-o, a universidade fará mal o que a empresa — no meu exemplo, um jornal — fará melhor, em termos de ensinar rotinas e técnicas. Mas há o que a universidade faz bem e a empresa não: no exemplo acima, explorar as significações, os sub-textos, as relações de poder. E isso justifica uma tese radical, que é a seguinte: nosso mundo está em mudança tão rápida que é inútil à universidade pretender adotar seu ritmo, imitá-lo, em suma, replicá-lo. É inútil até mesmo ela preparar, no sentido tradicional, para o mercado de trabalho. Quem, em sã consciência, pode prever hoje quais serão as profissões de futuro, daqui há vinte e cinco anos? E é exatamente daqui há vinte e cinco anos que os alunos que hoje, no final do segundo grau, estão escolhendo sua graduação estarão no auge de sua carreira profissional. Essa perspectiva é angustiante? É, mas não é muito diferente do que vivemos nós, por exemplo, que tínhamos dezoito anos em 1968. Já conosco, as coisas assim se passaram. Nem sempre a faculdade premiada deu a melhor carreira profissional. E este dado está, hoje, potencializado. Nem a universidade deve replicar o mercado, nem adianta escolher uma profissão pensando nos excelentes espaços de trabalho que ela proporcionará. Isso depende tanto de como cada um vai se inventar, no correr de sua vida, que conteúdos engessados serão de pouca valia. Esta é nossa segunda tese. O que a Universidade pode fazer é outra coisa, que está no eixo mesmo do curso agora proposto: a formação de uma base sólida o bastante para que, em meio às mudanças, o aluno saiba navegar.
Devemos preparar os alunos para uma vida de tempestades. E uma das melhores bússolas é o conhecimento dos clássicos — não porque eles dêem lições imortais, invariáveis, de moral, o que não tem mais cabimento ou sentido; mas porque, na sua diversidade, permitem exercitar o espírito com tal liberdade diante das injunções do cotidiano que, mudando este, a mente saiba encontrar um novo nicho, embora tão provisório quanto o anterior. A idéia é, portanto, que os clássicos, longe de ancorarem seus leitores na repetição das mesmas coisas, os capacitem a lidar com as mudanças melhor do que um ensino apressado, que aposte na espuma da impermanência. Mesmo as bússolas, porém, podem enlouquecer quando um ímã aparece por perto: nem sequer elas dão uma garantia, uma segurança, uma certeza — bens de que dispomos cada vez menos. Não temos assim nada a ver com a retomada do humanismo que, de criativo nos exemplos que apontava ao longo da Renascença, foi depois decaindo, até se converter — no começo do século XX — num aprendizado moral e cívico bastante convencional que se fazia lendo os gregos e os latinos. Lições de moral não adiantam. Mas o conhecimento, sim: é nele que devemos apostar.
A cultura para a pesquisa
A terceira tese diz respeito à cultura. No modelo de universidade que prevalece nas principais e melhores instituições brasileiras, o filet mignon é a pesquisa científica, seguida pela pós-graduação, a graduação e, finalmente, a cultura e a extensão. A qualidade do ensino, mesmo o de graduação, estará diretamente determinada pela da pesquisa. Isso não está errado. Contudo, o que queremos contestar é o lugar que assim se atribui à cultura. Associada à extensão, ela passa a ter o perfil da diluição, da transmissão ao grande público externo daquilo que a universidade criou. Teríamos assim uma sucessão de discursos, cujo caráter criativo estaria na razão inversa de sua legibilidade: a pesquisa, mais arcana; a pós-graduação, misto de pesquisa e formação; a graduação, que forma os alunos e treina os melhores para a pesquisa; o público exterior, que recebe os produtos da universidade, mas sem tomar conhecimento do processo de sua produção. De novo, esse desenho em círculos concêntricos não está completamente equivocado. Mas vamos ao problema, que é o lugar da cultura nele.
Nosso pressuposto é que a cultura, longe de ser um produto a difundir, longe de se entregar ao público como diluição dos arcanos, longe de ser o facilitário do difícil, pode constituir um fator relevante para melhorar a produção científica, na ponta mesma da pesquisa. Por isso, não pensamos em círculos concêntricos, mas numa serpente, misto de círculo e de caracol, pela qual a cultura — assim entendidas especialmente, neste projeto, as artes, a literatura e a filosofia, a cujo conjunto chamamos de humanidades — fecundará a pesquisa em ciências humanas. Não pensamos que as humanidades constituam simples ilustração embelezada daquilo que, pela via dura, se concluiu na pesquisa científica, mas que possam — justamente — formar alunos capazes de questionar em regra as regras que aprenderam, e ser capazes de inovar na pesquisa4. E converge com o espírito do novo curso que, hoje, a leitura da literatura, das artes e da filosofia — de textos, pois — apareça tantas vezes, nos melhores centros de pesquisa, como paradigma para as ciências humanas.
Daí que o novo curso proponha, não uma introdução genérica às ciências humanas, nem às humanidades, mas o desafio de capacitar para as primeiras por meio das segundas. Lévi-Strauss comenta, no Pensamento selvagem, aqueles cursos (refere-se implicitamente ao de filosofia) que levam muito longe — sob a condição, acrescenta irônico, que se saia deles. Sem a ponta de maldade, é isso o que pretendemos: que das artes, da literatura e da filosofia seja possível retirar pontos de abordagem que enriqueçam o trabalho nas ciências humanas.
Esta intensa culturalização que pretendemos de nossos alunos — e que Teixeira Coelho desenvolve adiante, em seu artigo — não significa, porém, que a consideremos a única via correta de aprendizado das ciências humanas na universidade. Ela é uma via, apenas. É uma experiência. Parte dela, sem dúvida, poderá servir a outros cursos, que eventualmente desejem valer-se de nossos acertos — e erros, que podem até ser mais numerosos — para incorporar o que acharem útil. Contudo, um pequeno curso-laboratório deve ter sua lógica própria, que exige uma flexibilidade grande, a ponto de poder rever-se constantemente.
Libertar os reféns
Nossa quarta tese5 é que precisamos acabar com o que há de tomada de reféns na vida universitária e talvez na vida em geral. Pergunta-se muito pouco, em nossa sociedade, qual é o cerne das questões. Ainda hoje, há quem, ao pretender formar um centro de pesquisas, comece pelo imóvel e pelos móveis, ou mesmo pela equipe, seu regime de trabalho, seus horários — e não pelos problemas com os quais ela vai se defrontar. Ou, para chegar mais perto de nosso curso, notemos que — embora na virada do século XIX para o XX a literatura russa tenha estado entre as mais pujantes do mundo — em nosso país não lemos Dostoievski nem Tolstoi em quase nenhuma escola de ensino fundamental e médio, pela simples, mas nada óbvia razão de que nelas não se estuda o russo. Como se a literatura russa devesse ser um produto secundário da língua russa e não um destacado patrimônio universal. Eis o que significa dizer que a pesquisa não pode ser refém de um imóvel, de móveis ou da burocracia, nem deve a literatura, de qualquer país que seja, ser refém de sua língua — e por aí podemos prosseguir. Evidentemente é importante estudar o russo, e a compreensão de seus autores será melhor quando se conhecer a língua; mas esta não pode ser uma condição na base do tudo ou nada: para um enorme público que quer conhecer o que há de melhor numa cultura é que existem traduções e tradutores, e temos alguns ótimos.
Um curso novo deve assim ter como projeto ir diretamente aos assuntos, não para torná-los mais leves ou palatáveis a seus alunos, mas para formar os alunos e os próprios professores na convicção de que a qualidade não se alcança multiplicando-se os escalões da necessidade. Há passos que são necessários, sim, mas não se pode transformar pré-requisitos em doutrina fundamentalista. Nem ficar só nos pré-requisitos.
Outro exemplo: teremos uma disciplina de projeto, na primeira versão do curso, que tratará da cidade de São Paulo. Estando sediado o curso nesta cidade, será esta uma maneira de testar no dia a dia e na matéria concreta o que, de outro modo, correria o risco de ficar demasiado teórico. Mas não é imprescindível que tal disciplina comece com a fundação, por Anchieta, do pequeno burgo de Piratininga, em 1554. A pergunta é: o que fez São Paulo ser o que é, hoje? Pode ter sido a chegada dos imigrantes, a industrialização; poderemos então começar pelo final fremente do século XIX, e só depois recuar no tempo, vendo não tanto como as coisas foram efetivamente no tempo dos bandeirantes, mas em parte isso e em parte como, na cidade jovem e nervosa do século XX, um passado quatrocentão foi ativado, intensificado, para servir de peça decisiva nas lutas pelo poder entre velhos e novos atores, entre auto-enobrecidos e carcamanos. O Pátio do Colégio assim assume nova significação — ainda mais porque a construção de hoje é, toda ela, fake6. Não há como estudar São Paulo imaginando que, em 25 de janeiro de 1554, estivesse ocorrendo a fundação do que é hoje esta cidade. Sucessivas refundações ocorreram, tensas, conflituosas. Recuperar esse elemento agônico, esse fator de luta, é fundamental no projeto que ora expomos.
Não inventar sínteses ilusórias
Este projeto tem mais uma convicção, sua quinta tese: a de que não é possível, intelectualmente, nem desejável, na formação do pensador, propor uma visão completa, harmônica, coesa das coisas. O próprio, no desenvolvimento das ciências humanas e sociais ao longo do século XX, foi tornar a sua totalização muito difícil. Os empreendimentos intelectuais que procuraram articular de maneira consistente as várias esferas da ação humana — em meio aos quais se destaca o do importante filósofo do século XIX, Karl Marx7 — acabaram tendo enorme dificuldade em integrar as disciplinas que surgiam, e cujos enfoques não são apenas complementares. São, também, divergentes. Podemos, didaticamente, enfatizar a complementaridade. Um exemplo de bastante êxito no curso de Ciências Sociais da USP introduzia os alunos à sociologia examinando a desigualdade, à antropologia estudando a diferença e à ciência política explicando a dominação. Mas esta própria introdução, planejada em conjunto, já prova que as três disciplinas não se integram numa disciplina a elas superior, numa ciência totalizante: embora cada uma precise, como do ar que respira, escutar as outras e integrar elementos delas em seu trabalho, seus enfoques privilegiam aspectos diferentes. O que pretendemos, no novo curso, é enfatizar estas diferenças.
Isso obedece a dois propósitos. O primeiro é uma concepção de como se dão as coisas, tanto em ciências humanas e sociais como nas humanidades. A pluralidade parece, numas e noutras, um dado insuperável. O avanço do conhecimento, no século que passou, deu-se o mais das vezes pela contestação; projetos globais de compreensão do mundo, como o do marxismo, estancaram em sua fecundidade há bastante tempo. Provavelmente a última grande safra de grandes obras marxistas se deveu ao grupo de Louis Althusser, entre os anos de 1950 e 1970. Ainda há uma fecundidade freudiana, embora em psicanálise seja difícil definir o que é pesquisa científica, de tanto que se debate — o que em nada a desmerece — se ela é mesmo ciência ou outra coisa. Mas de modo geral, os paradigmas têm uma produtividade breve no tempo e são sucedidos por outros. Um curso deve, pois, ser plural, e por isso, não cabe submeter a moldes o que não cabe neles.
O segundo propósito é pedagógico. Acentuar as diferenças parece estimular o pensamento original mais do que a ênfase na harmonia, na totalização. Embora seja importante apontar como um pensamento se liga a outros significantes culturais — como, por exemplo, a filosofia política de Hobbes é uma resposta ao direito inglês tanto quanto absorve uma leitura daquela nova e poderosa personagem do imaginário seiscentista, Don Juan —, é duvidoso que a ligação entre eles esteja em aplicarem, nos vários campos do conhecimento e da arte, a mesma forma ou matriz de pensar. Ora, se acentuarmos esses descompassos, estimularemos nossos alunos a pensar por si próprios, até porque não lhes estaremos dando uma resposta ou um modelo de integração e sim, mostrando como diferentes artes, ou ciências, ou linhas de pensamento, lidam com a mesma questão. Ou, ainda, como são tão diferentes seus enfoques que são diferentes as próprias questões com que lidam.
Uma experiência já praticada nesta direção consiste em fazer a mesma questão ser debatida de dois pontos de vista. O comparatismo pode ser, didaticamente, bastante útil. Contrastar, por exemplo, sistematicamente as propostas de Morus e Maquiavel, ou católica e luterana, ou hobbesiana e liberal, ou neoliberal e social-democrata pode ser um modo interessante de introduzir o aluno no mundo do pensamento — no qual não cabe o maniqueísmo nem a simplificação. Na melhor das hipóteses, ainda que rara, estaremos incentivando o surgimento de um pensador original. Na mais provável, formaremos uma pessoa apta a escolher em conhecimento de causa entre vários enfoques e, mais que isso, a saber em que ocasiões cada instrumento dos que aprendeu é mais oportuno.
Um projeto que vá além de seus pressupostos
Faz ainda parte deste projeto que ele seja — digamos — destacável. Isto quer dizer que podemos explorar indefinidamente seus pressupostos ou conseqüências, mas — sexta tese — ele pode existir e ser eficaz independentemente deles. Exporei uma só dessas conseqüências, aqui, e que é bastante controversa. Sabe-se que uma das grandes questões em debate, hoje, sobre a vida acadêmica é a dos departamentos. Eles surgiram, entre os anos de 1960 e 1970, em contestação à cátedra vitalícia. Esta, que por sua vez nascera a fim de preservar a independência do pensador consagrado em face dos poderes, tanto internos quanto externos à universidade, convertera-se muitas vezes em feudo. O departamento nascia como um espaço mais arejado de convívio entre docentes.
Contudo, com o passar do tempo, ele próprio gerou problemas novos. Bem pode ser que isto seja inevitável na vida acadêmica — que, na medida em que uma universidade opte decididamente pelo pensamento criativo (o que poucas fazem), qualquer cristalização institucional traga o risco, depois de algum tempo, de inibir as novidades no conhecimento, e por isso, convenha só ter estatutos ou formatos de duração determinada8. Mas o fato é que o departamento causa, pelo menos, dois problemas. O primeiro é que ele prende tudo, da pesquisa de ponta ao registro no Ministério do Trabalho. O segundo é que engessa tanto os currículos — uma vez que muitos cursos são geridos segundo as fronteiras departamentais, ou as de um pool de departamentos — quanto às pessoas, eis que não se estimula que os cursos e os grupos de pesquisa integrem elementos externos. Daí que hoje assistamos a uma forte crítica aos departamentos e conheçamos algumas tentativas de substituir seu formato por outro.
O presente curso obviamente se dá fora de uma estrutura departamental. Mas isto não significa que ele somente seja possível quebrando-se os atuais departamentos. Pode muito bem existir no atual modelo da universidade, ou em outro modelo. É o que quis dizer, ao defini-lo como destacável. Suas próprias condições impossibilitam que ele se amplie a toda a universidade: como não terá um currículo fixo, seu diploma não habilitará o formando a nenhuma profissão em especial. Na prática, isso significa que o graduando em Humanidades poderá cursar o mestrado ou o doutorado, orientando-se para a carreira universitária. Daí que o modelo do presente curso não deva ser considerado como algo que possa ser transposto à universidade como um todo.
Da mesma forma, a existência hoje, numa Universidade que tem centenas de habilitações, de três ou quatro que estarão diretamente subordinadas à Pró-Reitoria de Graduação, de forma alguma autoriza a ilação de que este projeto esvaziaria as Unidades em favor do poder central universitário. Evidentemente, não dispomos ainda de um modelo para a inscrição institucional de cursos que ligam várias unidades, mais ainda, dos que não têm currículo nem quadro docente fixo, como será o caso deste. Mas é óbvio que, caso se amplie o número desses cursos, tal desenho administrativo e político precisará ser feito. O que não tem sentido é, por receio dos desdobramentos institucionais, abandonar uma iniciativa que pode dar bons frutos — ou querer que as questões formais precedam as de conteúdo. O institucional, sobretudo na Universidade, tem que vir atrás e depois das idéias. Nunca elas devem ser barradas, por temor a seus resultados sobre a instituição. Como dizia um grande nadador dos anos 609, às vezes é preciso bombardear os quartéis-generais, querendo ele dizer que em certos momentos a residência do poder deve ser atacada por idéias e ideais novos.
***
Mesmo assim, é fundamental que o curso — por constituir uma experiência — tenha seus resultados, positivos e negativos, constantemente acompanhados e discutidos. Pretende-se que isto se faça de duas formas. A primeira é por um uso singelo mas permanente da Internet. O curso terá uma homepage, antes de mais nada para uso interno, na qual serão disponibilizados textos, avisos, links para sites que tenham interesse para o curso. Aliás, além de páginas do próprio curso na Internet, convém que haja páginas de todos os professores que passem pelo curso, nas quais estejam disponíveis pelo menos alguns textos seus significativos. E, à medida que uma disciplina seja ministrada, uma pequena ementa de dez ou quinze linhas, resumindo cada aula, poderá aparecer na tela, bem como as referências bibliografias utilizadas. Assim, embora alguns dos serviços dessa homepage sejam restritos aos alunos e professores, a grande maioria dos mesmos será de livre acesso ao público em geral. Isto permitirá um certo acompanhamento — solto — do andamento do curso, criando espaço para uma espécie de universidade aberta.
Contudo, a segunda e principal forma de visão externa do curso deverá dar-se através de seminários, semestrais ou anuais, durante os quais os docentes e a coordenação, com a participação do corpo discente, exporão e discutirão os resultados obtidos. É provável que algumas experiências possam ser transferidas, assim, para outros cursos, que o desejem. Também pode valer a pena que essa segunda forma de acompanhamento se dê de maneira mais institucional, com um vínculo mais forte, por exemplo, com o Núcleo de Pesquisas em Ensino Superior ou o Instituto de Estudos Avançados. Todavia, não convém engessar este esquema: é preferível que este acompanhamento vá se definindo na prática.
Com isso, estamos na última tese que alicerça este projeto. A USP é uma universidade pública, e é preciso ampliar o sentido desse adjetivo. Infelizmente, nos últimos anos, até devido aos acordos com o governo norte-americano, na década de 1960, que pretendia impor-nos o ensino pago, tendeu-se a confundir universidade pública e gratuidade dos estudos. Essa identificação foi tão longe que para muitos, quer favoráveis ou contrários ao pagamento dos cursos, a defesa do ensino público coincide plenamente com a de estudos que o aluno não paga. Ora, o ensino público pode incluir a gratuidade, mas vai muito além dela. Seu centro deve ser a idéia de que o bem comum, a coisa pública, a casa de todos está sendo beneficiada. Quando formamos um bom médico, não é porque demos a ele uma bolsa, a fim de cursar — de graça — um bom curso e não precisar pagar por um médio ou ruim. Isso pode até existir, mas a meta principal é intervir na saúde dos cidadãos como um todo, de modo a melhorá-la. O mesmo ideal vale para qualquer curso numa universidade pública. Daí a importância de que permanentemente os resultados do projeto sejam acompanhados, criticados, monitorados. Só desta maneira o novo curso poderá restituir à sociedade o que ela lhe deu.
Isto permite responder à dúvida de vários e à crítica de alguns, para quem este curso poderia ser elitista. Devemos começar lembrando que, hoje, há no ensino superior como um todo, um número de alunos muitíssimo superior ao das datas em que foram criadas nossas três universidades estaduais; isso faz que todo estudante delas de alguma forma constitua uma elite em relação às particulares, seja porque não paga por seu curso, seja porque geralmente se beneficia de um curso melhor. Se o termo elite significa um grupo pequeno que é avantajado em face à massa, com a passagem dos estudantes universitários brasileiros da centena de milhar para os milhões o termo passou a aplicar-se a muitos alunos, praticamente os de todos os nossos cursos. Por isso mesmo, a questão da elite não se pode colocar nesses termos, mas deve responder a duas questões: 1) Está havendo uma vantagem indevida para uma determinada área em direto detrimento de outras? 2) Os recursos carreados numa direção trazem um benefício não só para quem está nela, mas para a comunidade ou a sociedade em sentido mais amplo? Penso que já respondemos à segunda questão, mas logo voltaremos a ela. Quanto à primeira, os custos do novo curso serão baixos. Não haverá contratação de novos professores, e mesmo o que pode ter atraído a atenção de alguns — a qualidade do que chamamos de multimeioteca — deve ser bastante barato, eis que nosso propósito é adquirir coleções baratas de livros e discos, de fácil manuseio. Não é um curso de bibliófilos. É um curso em que todo elemento que se introduza deve ser utilizado, se possível à exaustão. Nossa prioridade não é a propriedade, mas o uso. Não o entesouramento, mas a apropriação.
Podemos concluir com a primeira questão — a do suposto privilégio. A maneira de eliminar privilégios não é coibindo iniciativas10. Ao contrário, é dando-lhes a maior publicidade, a maior tradução em termos sociais. Nosso tempo precisa de projetos novos, que procurem desatar os nós em que nos sentimos travados e liberar as energias que se vêem represadas. O fundamental é que um curso não esteja voltado só para quem participa dele. A idéia — que veio da Pró-Reitora de Graduação da USP — de apresentar a versão final do projeto às instâncias superiores da Universidade em formato de livro, deste livro, assim expressa uma nova convicção: a de que não só nossa comunidade interna, mas toda a sociedade, tome conhecimento do que está sendo proposto. Pode ser que estes textos inspirem outras iniciativas e sobretudo suscitem novos debates. Há privilégio quando acontece a apropriação privada da coisa pública. Mas é evidente que qualquer iniciativa é apropriada de formas diferenciadas. Em nosso caso, o curso é apropriado, em primeiro lugar, pelos seus alunos, a quem tentaremos proporcionar uma visão mais atualizada da pesquisa, em segundo, pelo mundo universitário, com o desafio de repensar o que é multidisciplinar e, em terceiro, pela sociedade, que deve sempre ser levada em conta na reflexão do curso e sobre ele.
***
No começo da década de 1990, a Universidade de São Paulo criou um curso experimental de graduação interdisciplinar em Ciências Moleculares — cujo balanço Celso Beisiegel, então Pró-Reitor de Graduação, faz em seu artigo no presente livro. A idéia era inovadora, uma vez que usualmente se pensa que o trabalho interdisciplinar deva surgir somente depois da graduação. O curso de Humanidades que agora se propõe pretende aproveitar a experiência desse curso e foi elaborado a convite da Prof.a Ada Pellegrini Grinover, Pró-Reitora de Graduação, que em nenhum momento esmoreceu em seu apoio, incentivo e estímulo. Agradeço a todos os que colaboraram na sua formulação, em debates formalizados ou não — em especial à coordenadora do curso de Ciências Moleculares, Prof.a Regina Markus, e ao Prof. Teixeira Coelho, da ECA, que me deram informações e sugestões permitindo iniciar o projeto, e a Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, pelas observações que me ajudaram a solucionar alguns problemas. Posteriormente, contei com as críticas e idéias dos Profs. Jorge Coli, da Unicamp, e Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional/UFRJ. Os resultados de um workshop com as Prof.as Ada Pelegrini Grinover, Anna Belluzzo, Olgária Matos e Paula Montero, e os Profs. Celso Campilongo, Francis Aubert, Francisco Scarlatto, João Hansen, Jorge Schwartz, Nicolau Sevcenko e Renato Queiroz foram muito úteis, assim como, depois disso, discussões que houve com os alunos de Filosofia e Ciências Sociais, com a Prof.a Marilena Chauí, com as Congregações da Escola de Comunicações e Artes e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, as sugestões de Roberto Lobo e Maria Beatriz Carvalho Melo Lobo, e ainda a decidida cooperação dos Profs. Waldenyr Caldas, Sônia Penin e Tupã Gomes Corrêia.
São Paulo, março de 2001.
Notas de rodapé
1. Professor titular de Ética e Filosofia Política do Departamento de Filosofia (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de: Ao Leitor sem Medo — Hobbes Escrevendo contra o seu Tempo (2a ed., Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999), A Última Razão dos Reis Ensaios de Filosofia e de Política (São Paulo, Companhia das Letras, 1993), A Sociedade contra o Social — O Alto Custo da Vida Pública no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 2000). Ex-diretor da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e ex-membro do Conselho Deliberativo do CNPq. Membro da Ordem Nacional do Mérito Científico.
2. Já a experiência no primeiro sentido corresponderia, em inglês, à fase do trial, julgamento ou juízo, judicial ou científico.
3. Mas sem desaparecer de todo, é óbvio.
4. Estudar numa graduação de Ciências Sociais o romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, não significará então dar um curso bonito, em que as teses científicas serão apresentadas com graça literária — mas começar perguntando como a literatura constitui, inventa, descobre um mundo; como o Nordeste e sua miséria deixaram de ser um problema moral (com Pedro II prometendo vender as jóias da coroa para acabar com a seca e a fome: três liquidações — das insígnias da realeza, da falta d'água e da carência de proteínas — que não ocorreram) para se tornar, desde o Quinze de Rachel de Queirós e a Revolução de 1930, um problema social; como o romance assim contribuiu decisivamente para criar uma nova sensibilidade política em nosso país. Este é um exemplo de como se sai de uma perspectiva na qual a literatura ilustra, decora, orna — segundo uma estética de segunda — para outra, em que ela se mostra produtiva, criadora de mundos. Veja-se, de Jorge Luis Borges, "Una Rosa Amarilla", In El Hacedor, republ. In Obras Completas, Buenos Aires, Emecé, p. 795, e nosso artigo "O Discurso Diferente", In A Última Razão dos Reis, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 71-81.
5. Pensei também em chamar estas teses de pressupostos. Mas não são nada disso, até porque o projeto não partiu das idéias que agora estou expondo, para aí chegar a sua concreção. Ao contrário, à medida que se desenvolvia o projeto é que as idéias mestras se foram decantando, como borra que se deposita numa taça de vinho.
6. O mais antigo prédio da cidade precisou ser demolido e foi refeito, com materiais e técnica modernos.
7. Cito Gerd Bornheim: "Com a queda do muro de Berlim, perdemos um ideólogo e ganhamos um filósofo — Marx".
8. Thomas Jefferson bateu-se para que a Constituição de seu Estado, a Virgínia, previsse explicitamente uma duração breve no tempo, devendo ser revisada por completo a cada geração — ou seja, a cada vinte anos.
9. O atleta chinês Zedong, celebrizado por bater recordes de natação, já bem velho, no Yang Tse-Kiang. Não quero avaliar aqui suas qualidades ou defeitos fora dos desportos olímpicos.
10. Até porque já temos, em universidades públicas, cursos que contam com recursos bem maiores que este e para poucos alunos — o que é legítimo, se isso se traduzir em ganho social.
quarta-feira, 7 de agosto de 2019
O paraiso das damas, de Emile Zola
Émile Zola encena o mundo do consumo e do supérfluo
Livro descreve surgimento das lojas de departamento e mostra nova ordem social
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
A carne é fraca, mas a roupa é mais ainda. Essa visão do desejo como mola propulsora da sociedade moderna está no centro de um dos romances mais fascinantes do século 19, o primeiro a colocar o consumo no primeiro plano narrativo.
Publicado em livro em 1883, "O Paraíso das Damas", de Émile Zola (1840-1902), descreve o surgimento da primeira loja de departamento da história e que dá nome ao livro -ela é inspirada livremente no "Au Bon Marché", que existe até hoje nos números 22 e 24 da rua de Sèvres, em Paris.
Entre frufrus dos vestidos das madames e a algazarra de um mercado persa, "O Paraíso das Damas" cria um universo novo de tecidos, cores, texturas vindos de toda parte do mundo, criados e desfeitos ao sabor do capricho de cada estação.
Vitrines de Zola
Mas, em Émile Zola, não se trata de especulação, mas de pura representação: em cada vitrine, em cada balcão, em cada prateleira de "O Paraíso das Damas", reencena-se, a todo o tempo, o grande palco da vaidade humana.
Seu fio condutor é a típica história de amor derivada do gênero mais popular do século 19: o romance de folhetim.
Denise, a humilde órfã que chega à cintilante capital em busca de sustento para si e para o irmãozinho, em pouco tempo se torna balconista da maior sensação da Paris de então. Logo desperta o interesse do patrão, Mouret, jovem ambicioso e dominador. Aos poucos, sua candura e dignidade amolecem o coração do jovem e, juntos, enfrentarão as contingências de renda e classe.
Vida injusta
Sabe-se que um escritor como Flaubert fez picadinho, em "Madame Bovary" (1857), desse clássico entrecho folhetinesco. Mas não era esse o objetivo de Zola. Mais que a busca do "mot juste", Zola sempre perseguiu a "vida injusta", sub-representada pela afirmação política, econômica e social da burguesia parisiense da segunda metade do século 19.
Isso se vê em obras clássicas como "Germinal", sobre a vida dos mineiros de carvão, ou ainda, "Nana" e, claro, "O Paraíso das Damas".
Pois a força de sua narrativa não vem da precisão obsessiva e quase árida que existe em Flaubert, mas, ao contrário, da exuberância das longas frases e de descrições cumulativas que hoje se poderiam chamar de barroquizantes.
Nova ordem
Aqui, em vez dos mineiros enterrados no norte da França, há a exploração das classes mais baixas emigradas do interior pobre e atraídas pela concentração de capitais da tardia revolução industrial francesa.
Ao mesmo tempo, o romance também traça o surgimento do grande comércio impessoal, que devorava, com os "dentes de ferro de suas engrenagens", o pequeno comércio de rua -as "boutiques" familiares e descapitalizadas.
E, na grande cidade, bairros inteiros de Paris vinham abaixo para dar espaço aos amplos bulevares concebidos pelo barão de Haussmann.
Como síntese dessas linhas de força concentradas em Paris, paira O Paraíso das Damas, "uma capela construída ao culto das graças da mulher".
Assim, no momento em que a sociedade de consumo apenas despontava no horizonte, Zola anteviu com precisão a nova ordem, descrita nas palavras de Mouret: "Eu tenho a mulher, pouco me importa o resto".
O PARAÍSO DAS DAMAS
Autor: Émile Zola
Tradução: Joana Canêdo
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 59 (498 págs.)
sexta-feira, 18 de janeiro de 2019
Contos da mamãe gansa, de Charles Perrault
Contos da mamãe gansa, de Charles Perrault, editado pela Cosac Naify. Li ontem, integralmente. Aqui as história compostas num vocabulário leve, todas seguidas das quadras rimadas com a moral/ou várias definidas pelo Charles Perrault para qual tais contos encerram ensinamentos.
O conto Chapeuzinho Vermelho aqui foi quase textualmente empregado por João Guimarães Rosa na sua reescritura do conto "Fita verde no cabelo: nova velha estória". Há palavras apropriads pro ele, e até o ritmo é o mesmo no seu "reconto atualizado".
Uma grande surpesa para mim foi "O pequeno polegar" na qual está fundida a narrativa de João e Maria, e em vez da bruxa, tem-se um ogro, e a partir da fuga na casa engendra elementos de outros contos, lembrando aquelas aventuras do Barão de Munchausen. Como todas, bastante violentas.
As ilustrações de Milimbo, tradução de Leonardo Fróes.
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