sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Contos da mamãe gansa, de Charles Perrault


Contos da mamãe gansa, de Charles Perrault, editado pela Cosac Naify. Li ontem, integralmente. Aqui as história compostas num vocabulário leve, todas seguidas das quadras rimadas com a moral/ou várias definidas pelo Charles Perrault para qual tais contos encerram ensinamentos.


O conto Chapeuzinho Vermelho aqui foi quase textualmente empregado por João Guimarães Rosa na sua reescritura do conto "Fita verde no cabelo: nova velha estória". Há palavras apropriads pro ele, e até o ritmo é o mesmo no seu "reconto atualizado".


Uma grande surpesa para mim foi "O pequeno polegar" na qual está fundida a narrativa de João e Maria, e em vez da bruxa, tem-se um ogro, e a partir da fuga na casa engendra elementos de outros contos, lembrando aquelas aventuras do Barão de Munchausen. Como todas, bastante violentas.


 As ilustrações de Milimbo, tradução de Leonardo Fróes.

Mestres e Guias (por Márcia Denser)



Entre todos os meus mestres, guias ou mentores se foram prematuramente, só Raduan Nassar é o único ainda vivo. Hamilton Trevisan, o mais importante na minha formação de escritora, morreu cedíssimo, aos 45 anos, em 1984; Ênio Silveira em 1986, Marcos Rey e Paulo Francis em 1996 e 1997 respectivamente. A única mulher da lista, Ray-Gude Mertin, minha agente literária alemã e velha amiga desde 1984 (incrivelmente no mesmo ano da morte de Hamilton, como a sucedê-lo) o câncer a levou em 2007.

Uma verdadeira queima de arquivo, meu arquivo.

Raduan, com suas obsessões, seu desprendimento, suas contradições, sua independência, sua personalidade magnética, sempre foi um homem poderoso, essencialmente poderoso.

Em razão de ser rico (o que significa poder para concretizar objetivamente seus projetos sem depender de fatores externos) e das acentuadas inquietações e ambições – ainda que em constante mutação, é bem verdade – haja visto o abandono do Direito pela Filosofia e o abandono desta antes mesmo de se graduar para fundar o Jornal do Bairro em 1967, e o abandono do Jornal do Bairro quando este mais estava dando certo para virar escritor em 1974, indo escrever Lavoura Arcaica e a seguir Um Copo de Cólera, e depois do extraordinário sucesso literário, o abandono da literatura para virar fazendeiro e pecuarista, novamente muitíssimo bem-sucedido, contudo posteriormente também abrindo mão de sua fazenda Lagoa do Sino  – representando o trabalho e investimento de décadas – para também doá-la em 2011 ao estado brasileiro, num gesto admirável a coroar-lhe magistralmente a biografia.¹

Vejam: ele abandonava o trabalho, não a obra ou o resultado do trabalho, posto que suas obras – tanto os livros quanto a fazenda – ele as oferece à humanidade e à posteridade e providencia para que isto efetivamente aconteça. Poucos autores no Brasil têm tantas edições e reedições, traduções no exterior, versões para o cinema, prêmios, tributos e homenagens quanto Raduan Nassar.

Por ser quem é – rico, articulado, ambicioso, inquieto, independente, poderoso – foi inevitável que Raduan tivesse ligações tanto com a Universidade desde os anos 60/70, quanto com editores, escritores, tradutores e agentes nacionais e internacionais, instâncias do sistema que determinam os destinatários das benesses culturais e literárias – prêmios, honrarias, bolsas, homenagens - e que seu êxito editorial caminhasse paralelo a tais conexões.

Em síntese, sua obra tem valor inegável, mas o fato dele ser uma poderosa, complexa e intrigante personalidade, pesou consideravelmente para seu extraordinário reconhecimento. A mesma obra assinada por um ilustre desconhecido, uma personalidade apagada, não teria a mesma repercussão.

Foi por intermédio dele que, no início de 80, obtive a bolsa de escritor residente do International Writing Program de Iowa/USA, o que significava ter que ficar de três a cinco meses nos Estados Unidos, o que não foi possível pelo fato de ser na época  chefe de família (papai doente) e a Fiesp não me conceder uma licença sem vencimentos tão longa.

Dois anos depois, já agenciada por Ray-Güde Mertin, esta conseguiu-me a bolsa do DAAD, programa de escritor residente que implicava em morar um ano em Berlin, a qual, literalmente com o coração sangrando, novamente tive que declinar em função do meu maldito emprego muitíssimo bem remunerado.

Já Hamilton Trevisan, por me amar demais e se saber pouco amado, enfatizou o papel de mentor, de guia, para se fazer indispensável. Nos conhecemos e ficamos amigos em 1975 pelo fato de ter ganho o concurso da Escrita. HT foi quem primeiro apreciou meu trabalho, editou os contos do primeiro livro, Tango Fantasma, batalhou a editora – a Alfa-Ômega – ensinou-me o que guardar e o que jogar fora, legou-me um paideuma, precisamente no sentido poundeano do termo como a ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva deste e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos.

Ou seja, legou-me um método e um elenco de autores que me ensinou a amar, a  ler e reler e com quem realmente aprender o ofício: William Faulkner (traduziu O Urso da novela Go Down Moses), Flaubert, Proust, Conrad (traduziu O Coração da Treva) Huxley, Fitizgerald, Hemingway, Capote, americanos, alguns ingleses, todos os russos.

Se os sulamericanos – Cortázar, Borges, Vargas Llosa, Garcia Marques - foram uma descoberta da minha geração -  Hamilton e a dele legou-me os norte-americanos e europeus.

Porquanto Raduan, na mesma época, lesse demais uns autores como Gide, Camus, talvez Kafka e Cioran, com quem eu absolutamente não conseguia me afinar, este teve antes um papel nas indicações pontuais de estilo e do fazer literário tais como esta que me valeu para o resto da vida: quando em dúvida, não pontue.

Ele dizia que o grande escritor se conhece logo nas primeiras linhas, de cara, “não tem essa de engrenar lá pela página 100, isto é cascata de gente palavrosa e sem talento”. Ou “prosador tem que ler os poetas. São eles os grandes inventores da língua”.

Aos 30 anos publiquei meu segundo livro, O Animal dos Motéis. Massao Ohno e Ênio Silveira me vieram com este título e esta capa como fatos consumados –  fait’accomply! Filhos da puta! A capa era o Sátiro Cunilingüento - numa foto em alto-contraste - depositado no Museu de Nápolis com feéricas letras de motel.

Naturalmente que eles queriam vender o livro, mas ficava difícil apresentá-lo ao distinto público com alguma dignidade. Isto, na época, cujo imaginário era infinitamente conservador e careta. Agora voltou a ser, mas é outra estória e por todas as razões erradas.

O escândalo só não foi maior porque em 1980 era tão difícil publicar em livro - e ainda mais difícil pela Civilização Brasileira - representava um conquista tão grande em termos literários para uma escritora jovem, que o aproach erótico/mercadológico dos editores foi de certa forma obliterado e colocado em segundo plano.

Porque realmente eu tinha muito talento e por ele fui reconhecida. Um verdadeiro dom – sobretudo para o chiste, a frase irônica, a observação ferina – aliás, me tornaria uma das escritoras mais temidas da comunidade literária e por bons motivos.

Ao longo dos anos, tive uma reputação consolidada como escritora revolucionária, altamente técnica e sofisticada, apreciada em círculos rarefeitos e estritos, além de debochada e maldita – o que me valeu o ódio duma certa oficialidade empoeirada de prêmios e concursos que amarguei pelo resto da vida.

Aliás, meu primeiro grande editor foi Ênio Silveira da Civilização Brasileira e o critério dele para editar era essencialmente qualitativo (dele, do José Olympio, do Caio Graco Prado, do Jorge Zahar, na época todos vivos).

Antes de tudo, eles buscavam escritores de talento, depois vinha o resto. O resto que hoje foi para o topo da lista das tendências do mercado editorial, tipo auto-ajuda, celebridade escrevendo, criança escrevendo e outras bobagens que entopem livrarias e bibliotecas com puro lixo. É preciso ter em mente que Ênio foi o primeiro editor de Hemingway e Faulkner no Brasil.

A maioria dos pangarés atuais que ganham prêmios e edições dessas editoras pautadas unicamente pelo mercado de idiotas e seus curadores espertos sequer seria lida por eles: não é uma sorte desses caras que os grandes editores do passado estejam mortos?

Mas O Animal dos Motéis esgotou sua edição no primeiro mês, a máquina de divulgação da Civilização Brasileira era mesmo eficiente e afinal que escritor poderia dizer que na fila para o autógrafo no dia do lançamento (23 de junho de 1981 na Cave do Poeta no Bixiga) pudesse contar com Raduan Nassar, Cassandra Rios, Marcos Rey, Caio F., Massao Ohno, Osman Lins, Ricardo Ramos, Paulo Mendes Campos e Lygia Fagundes Telles, todos reunidos? Hein?

Então a unanimidade era eu.

Quem duvidar é só conferir na edição de Cartas de Caio F., organizada por Italo Moriconi ( Aeroplano, 2002). Logo no início, numa delas, Caio F. descreve precisamente esta noite de autógrafos, ao menos até a hora em que ele se apaixonou perdidamente por um bofe lindo de morrer e deu no pé!

(DesMemórias, capítulo 62, a ser publicado em 2020)

FONTE AQUI

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Análise: Poeta português Herberto Helder foi autor de obra antológica

O que diria o leitor menos afeito a poéticas estranhas, ao ler versos como estes: "A menstruação quando na cidade passava/ O ar. As raparigas respirando,/ Comendo figos –e a menstruação quando na cidade/ corria o tempo pelo ar./ Eram cravos na neve. As raparigas/ riam, gritavam –e as figueiras soprando de dentro"?

Porventura, ficaria surpreendido com a sucessão de imagens criadas pelo poeta implodindo no interior da realidade.

Este poeta chamava-se Herberto Helder, era português madeirense, nascido em 1930, numa ilha algures no Atlântico, e conhecida no Brasil por causa do vinho que lá se produz, o Madeira. Ele morreu na última segunda (23), aos 84 anos, de causa ainda não revelada. Sua obra surgiu para revolucionar a lírica portuguesa do século 20. Ao estrear na literatura com o livro "Amor em Visita" (1958), fincou suas bases, a partir daí, sobre um terreno surrealista, com uma alta voltagem experimental, demonstrando que o autor vivia sob tensão criativa.

E aí apareceram obras que conquistaram legiões de admiradores e leitores, como "A Colher na Boca" (1961), "Electronicolirica" (1964), "Antropofagias" (1971), "Photomaton & Vox" (1979), "Os Selos" (1989) e "Do Mundo" (1994).



LUCIDEZ 

Continuou a publicar mesmo depois dos 80 anos, demonstrando que sua lucidez se mantinha aguda e com uma expressividade poética jovialíssima em obras como "Servidões" (2013) e "A Morte sem Mestre" (2014). Ao mesmo tempo em que granjeava notoriedade, um problema começou a se desvelar. Sua radicalidade em não surgir na mídia, a defesa feroz da sua privacidade, o desprezo e a recusa pelos prêmios literários revelaram um autor que não se vergava ao poder dos holofotes. Apesar desta atitude, Helder só aumentou a curiosidade em torno de seu nome e de sua obra. Na juventude, estudou na Universidade de Coimbra, mas não acabou o curso. Na década de 1960, viajou para França, Holanda e Bélgica, lugares que se tornaram cenário dos contos de "Os Passos em Volta" (1963). Teve as mais diversas profissões –publicitário, jornalista, meteorologista, tradutor. Mas na verdade, ele foi apenas poeta. 

TRIBOS BRASILEIRAS 

Sua relação com o Brasil era próxima –parentes em Santa Catarina. É curioso notar em sua obra o interesse que mantinha pelos textos cosmogônicos de tribos indígenas brasileiras, ou mesmo a inserção que fez em alguns poemas de temáticas e referências brasileiras. Um bom tema para os estudiosos. Apesar disso, há apenas três antologias do autor lançadas aqui: "O Corpo O Luxo A Obra" (Iluminuras), "Os Passos em Volta" (Azougue Editorial) e "Ou o Poema Contínuo" (Girafa). É óbvio que sua obra não detém a projeção maciça de um Fernando Pessoa, mas é sem dúvida referência antológica e obrigatória. Para além da sua personalidade refratária a qualquer tipo de massificação, Herberto Helder ergueu uma catedral onde se cruzam a densidade mágica da poesia e do homem e os meandros tecnológicos de um mundo em mutação. Seu anonimato provocatório, num mundo de exposição massiva, só deixa mais evidente uma obra sem igual. 



JORGE HENRIQUE BASTOS 
ESPECIAL PARA A FOLHA 25/03/2015 02h25