terça-feira, 9 de outubro de 2018

Pasquale analisa Caetano Veloso e Chico Buarque

PASQUALE CIPRO NETO 

"Onde queres um canto, o mundo..."
O uso da segunda pessoa "clássica" é um recurso estilístico, que pode conferir elegância e leveza ao texto


A SEGUNDA pessoa do singular está caduca e por isso deve(ria) ser abolida das letras das nossas canções, das obras literárias, das peças de teatro etc.? O caro leitor e alguns especialistas podem até achar que sim, mas talvez seja conveniente fazermos um passeio por alguns registros linguísticos, a começar pelas letras da nossa música popular.

Podemos começar, por exemplo, por "Carinhoso", cuja letra é do genial João de Barro, o Braguinha (a melodia, como se sabe, é do não menos genial Pixinguinha): "Se tu soubesses como eu sou tão carinhoso (...) Eu sei que tu não fugirias mais de mim...". Sim, a canção é antiga etc., mas algum brasileiro, das mais diversas idades e regiões, terá dificuldade para entender essa letra? Alguém talvez diga que Braguinha redigiu assim porque era esse o linguajar predominante no tempo em que compôs esse delicado texto.

Está bem. Então avancemos um pouco no tempo e cheguemos a Chico Buarque. Podemos pegar, por exemplo, a letra de "Mil Perdões" (de 1983), composta para o filme "Perdoa-me por me Traíres": "Te perdoo por fazeres mil perguntas (...) por pedires perdão, por me amares demais (...) por ligares pra todos os lugares de onde eu vim (...) por ergueres a mão, por bateres em mim (...) por quereres me ver (...) por contares minhas horas (...) porque choras quando eu choro de rir".

Podemos apanhar outra letra de Chico ("Eu te Amo", de 1983; a melodia é de Tom Jobim): "Se entornaste a nossa sorte pelo chão (...) Acho que estás te fazendo de tonta, te dei meus olhos pra tomares conta...". Podemos apanhar também a letra de "Atrás da Porta" (de 1972; a melodia é de Francis Hime): "Quando olhaste bem nos olhos meus...". Seria o nosso Chico Buarque um retrógrado, um poeta ultrapassado?

Bem, deixemos essa questão para lá (por ora) e vejamos outro artista do século 13 (ou seria 11?), o genial Caetano Veloso. Podemos tomar como exemplo "Os Passistas": "Às vezes tu te voltas para mim na dança sem te dares conta enfim que também amas...". Outra que podemos analisar é "O Quereres", obra-prima do Mestre: "Onde queres mistério, eu sou a luz, e onde queres um canto, o mundo inteiro...".

Será que Chico Buarque e Caetano Veloso nem sempre reproduzem em seus textos a linguagem predominante nos dias de hoje nos lugares em que vivem porque são anacrônicos, retrógrados, desantenados? Ou será que eles apenas se valem de um dos tantos registros VIVOS do nosso idioma, que, além de lhes permitir o alcance de belos efeitos poéticos e estilísticos, permite-lhes também o básico, ou seja, a compreensão de suas obras?

Façamos uma experiência: tomemos uma das obras citadas e troquemos "tu" por "você". Se pegássemos o verso de "Eu te Amo" ("Se entornaste a nossa sorte..."), não poderíamos deixar implícito o sujeito. Passaríamos, pois, a "Se você entornou a nossa sorte...". Que tal? A melodia certamente iria para o beleléu. E se fizéssemos isso com "Atrás da Porta"? Teríamos isto: "Quando você olhou bem nos olhos meus...". Que tal? Nada a declarar.

O uso (mais do que legítimo e vivo) da segunda pessoa "clássica" é no mínimo um recurso estilístico, que confere elegância e leveza ao texto, de modo que sua "proibição" é tão sórdida quanto sua imposição. Abaixo a ditadura, caro leitor. Sobretudo a da falsa modernidade.
Em tempo: este texto é dedicado ao grande Caetano Veloso. É isso. 

Sobre Castro Alves, resenha de Marielson Carvalho



"Eu tenho em mim o borbulhar do gênio". Esta frase dita por um desconhecido, ou mesmo por uma celebridade da vez, poderia soar como presunçosa, arrogante, medíocre até... Mas deixa de ser, quando se sabe que quem a falava com voz sonora e altiva nas tribunas de salões e nos balcões de teatros era Antônio Frederico de Castro Alves.

É certo que a vaidade, tanto intelectual (não aceitava facilmente contestações a seus poemas), quanto estética (cuidadoso na vestimenta e no penteado), era uma de suas características, mas era uma vaidade sem enaltecimentos vãos. Fazia parte de sua performance de poeta romântico.

Tinha certeza de que sua vocação não era para o Direito, mas para a Poesia, e nesta seara, ao lidar com letras menos duras, mas nem por isso destituídas de verdade, afirmaria sua genialidade como pensador de seu tempo.

Reencontrei-me com Castro Alves nesta semana. E penso que sempre temos sua poesia presente, porque seus versos ecoam ainda em nosso imaginário como "espumas flutuantes" que nunca se dissipam dos mares.

Esta revisitação aconteceu pelas mãos de Alberto da Costa e Silva, autor de "Castro Alves: um poeta sempre jovem" (Companhia das Letras, 2007, 198 páginas), que faz um perfil do criador de "O navio negreiro" com variedade de informações sobre a sociedade escravocrata do período e como Castro Alves transitou num ambiente hostil aos negros, do qual nem ele mesmo pôde de todo se desvencilhar, já que, a sua convivência com africanos ou afro-brasileiros escravizados na intimidade do lar, era antagônica politicamente à sua campanha e verve abolicionistas.

Em 24 capítulos (não por acaso a idade com a qual o poeta morreu), Costa e Silva nos mostra as intimidades e a personalidade deste baiano de Curralinho (atual Castro Alves), sem cair no pieguismo com que muitos críticos literários e biógrafos já fizeram.

O autor, especialista em escravidão no Brasil, dá ao texto um tom quase ensaístico, sem esquecer de uma linguagem mais narrativa para descrever as aventuras e desventuras de Cecéu em Salvador, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente entre os nove anos e cinco meses (1862-1871) em que construiu uma vida literária de reconhecimento popular, num período de público-leitor reduzido, mas ouvinte atento às declamações de poetas em eventos abertos como os que Castro Alves participou.

Algumas curiosidades são reveladas, como a da madrasta de Castro Alves, viúva de um traficante de escravos da Bahia, o português Lopes Guimarães, que ao morrer deixou para ela e os três filhos uma herança que garantiria o mesmo status social e financeiro, inclusive a continuidade por algum tempo dos negócios negreiros do falecido. O palacete da rua Sodré, onde Castro Alves morreu, fazia parte do inventário. Lá, o pai do poeta foi morar com os filhos. A Viúva Lopes, quando o patriarca Alves morreu, teve de assumir as despesas de Castro Alves no curso de Direito em Recife. Ironicamente, o dinheiro que ela ganhara com o tráfico, bancou o poeta abolicionista em suas tertúlias. E o tiro no pé, hein? Acidente ou tentativa de suicídio? Ele havia terminado o namoro, quase casamento, com a atriz lisboeta Eugênia Câmara, para quem escreveu a peça "Gonzaga" e vários poemas líricos, inspirados ora em alegrias, ora em tristezas pelas quais passava o casal. Falou-se muito que Castro Alves amava mais Eugênia, do que o contrário. E que parte das brigas devia-se mais aos ciúmes de Castro Alves, que não gostava de ver Eugênia assediada (e correspondendo ao cortejo) por homens mais maduros e experientes que ele.

Outra versão era que, mesmo apaixonado por ela, sua vaidade era maior, pois não admitia que a mulher tivesse mais aplausos que ele ou que ela não lhe desse sempre louros. Culta, livre e independente (dez anos mais velha), Eugênia batia de frente contra esse egoísmo de Castro Alves. O rompimento era certo. E até a morte, nunca esquecera um só minuto dela.

Com o tiro, ocorrido numa caçada no Brás, redondezas do centro de São Paulo, Castro Alves, que já amargava a dor do coração dilacerado com a separação, teve de suportar a dor física causada tanto pelo ferimento no pé, quanto dos pulmões enfranquecidos pela tuberculose que o acompanhava desde adolescente.

Pé amputado, tuberculose incurável, Castro Alves retornou para Salvador, mas não perdeu o espírito poético e produziu até o fim. É claro que perdeu a vivacidade dos tempos de convivência política e literária em Recife e em São Paulo, mas sua força de vontade resultou na edição de "Espumas flutuantes", quase um ano antes de morrer.

O poeta, que já tinha revelado "O navio negreiro" em 7 de setembro de 1868, preferiu por fechar o ciclo de sua borbulhante genialidade com um livro, cujos poemas, embora carregados de sentimentos mais românticos e amorosos, não descuidavam de tratar de uma questão cara à sua trajetória como homem de poesia contra o Brasil escravista de então: a liberdade.

Adelaide, sua irmã, narra os últimos momentos de Cecéu: "Na véspera de morrer (...), à noite, perguntando as horas e se lhe respondendo: 'É meia noite', suspirou dizendo: 'Será possível, meu Deus, ainda um dia de dor?' (...) Numa das ocasiões (...), angustiada, lhe passava o lenço pela fornte umedecida, ele com voz extinta quase, mas repassada de meiguice, murmurou-lhe: 'Guarda este lenço... com ele enxugaste o suor de minha agonia. (...) Foi sem grandes ânsias nem estertores. Imóvel já, o olhar fito nessa nesga de céu que se descortinava da janela aberta em frente ao leito em que jazia - pouco a pouco a luz desse olhar foi amortecendo, até de todo difundir-se nas sombras da Eternidade... Eram três e meia horas (...) da tarde".

Foi enterrado no dia seguinte, 7 de julho de 1871, no Campo Santo. Três anos depois, seus restos mortais foram recolhidos ao mausoléu do ex-marido de sua madrasta, o traficante de escravos. Mais uma ironia do destino, desta vez menos indireta. Só quase cem anos depois, em 6 de julho de 1971, foram trasladados para o monumento da praça, batizada com seu nome, onde sua imagem com o braço estendido e em perfomance declamatória parece estar sempre bradando, para os quatro cantos da Cidade da Bahia, versos como "a praça é do povo/ como o céu é do condor".

FONTE
http://marielsoncarvalho.blogspot.com/2007/07/castro-alves.html